Coluna

Os sons da cozinha

*Rafael Duarte
Professor de Literatura
@rafaelduarte_silva

Na semana passada, depois que alguns amigos leram meu texto, que narrava a situação do encontro em torno da comida, responderam indagando: “e a música?”, “eu nem sei cozinhar, mas tenho uma bela coleção de discos.” Parei e pensei: “não há encontro no vazio.” Na verdade, há sim, é claro. Ele é, inclusive, uma motivação para os processos de análise, no entanto, esse domínio, deixo pro “No Divã do Chef”, projeto do @chefrogerioduarte.

Motivado por esses questionamentos, comecei a pensar nos sons que são produzidos pelos processos gastronômicos. Lembrei que a faca ao pressionar a tábua produz sonoridade. Se de madeira, de pedra ou de acrílico, o estalo da lâmina quando chega à superfície dura ecoa de maneira distinta. Antes disso, o corte da cebola, camada por cama, parece um instrumento musical. Na mesma esteira, penso que descascar e picar o alho seja propor um ritmo sonoro com o exercício das mãos e com uma ferramenta de corte.

Foto: Pixabay

Tenho certeza de que são inúmeros e intermináveis esses sons. Sempre fiquei curioso com as conversas entre sommeliers e baristas, mas nunca tive habilidade pra identificar notas de chocolate no vinho ou no café. Nesse sentido, toda que vez que alguém comenta sobre esse assunto, cai sobre mim a possibilidade de me atentar infinitamente pela busca de um lá menor enquanto frito batatinhas na gordura quente.

Além disso, me pego refletindo – apesar de já ter conhecido algumas – em como se dá a expressão sonora na cozinha de um restaurante. Beleza há, isso é inquestionável, mas pressão, além da panela, há também, acredito. Diante disso, como nosso mundo moderno exige, cada vez mais, o posicionamento verbal – e o verbo anda solto por aí -, tenho ressoando nos ouvidos alguns gritos, sussurros, lamentações, reclamações, discussões e, obviamente, afetos, carinhos, elogios e delícias.

Existem, ainda, os sons dos pratos. Os ouvimos quando colocados à mesa, vazios ou montados. Os ouvimos quando sofrem com o atrito dos talheres, quando o legume mal cortado, sobre eles, escorrega no azeite. Tem também o barulho do guardanapo esfregando as mãos, a boca ou a barba. O som da toalha de mesa, da cadeira arrastando, dos sapatos que caminham até a reserva, da colher que cai no chão. O som do ronco no sofá com a televisão ligada.

Foto: Pixabay

Ainda antes do prato chegar à mesa, podemos escutar a colher batendo na panela, a tampa deslizando e liberando o vapor. O barulho do fogão sendo ligado, do fogo ardendo e da água sendo jogada no arroz. Todo esse percurso soa como música. Parece orquestral esse maquinário se movimentar e produzir, se juntos, quase acordes. Por outro lado, existe quem não abra mão de uma musiquinha enquanto cozinha, enquanto reúne os amigos pra comer algo ou simplesmente enquanto se alimenta: o samba do churrasco, o sertanejo do sextou com petiscos, o eletrônico do sábado com bons drinques, o jazz do encontro improvisado na quinta à noite.

E, assim, segue o baile. Ou melhor, e, assim, seguem os pratos. Assim eu também sigo: atento aos sons que são produzidos ou reproduzidos diante de um evento gastronômico. Desse modo vou afinando o tom da garfada com um pé na cozinha e o outro na sala, ou seja, com um olho lá e outro cá. Repensando tudo sempre e melhor dizendo, com um ouvido lá e outro cá.

Leia também:

A comida e o encontro em torno da mesa

Rafael Duarte é colaborador do Territórios Gastronômicos

Territórios Gastronômicos

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