Coluna

O biscoito que me leva para a infância

*Rafael Duarte
Professor de Literatura
@rafaelduarte_silva

Outro dia, quando conversávamos na sala de casa, Tarsila com seus três anos recém-completados, me perguntou:
– Papai, quando você vê uma estrela o que você deseja?
Eu enrolei qualquer coisa, dizia algo sobre paz ou sobre a felicidade dela, e, antes de eu pensar em devolver a pergunta, ela, de supetão, me surpreendeu:
– Sabe qual é o meu, papai?
– Qual, filha?
– Biscoito! O meu desejo é biscoito!

O professor de Literatura, Rafael Duarte, e a filha, Tarsila ( Foto: acervo pessoal)

Diante dessa surpresa, lembrei-me, imediatamente, do biscoito frito da minha avó. Sentado à mesa, eu permaneci, entrei naquela espécie de túnel que faz com que qualquer som ao redor fique mudo e me vi na cozinha da casa da minha mãe, esperando…

Era um evento: limpar a mesa com um paninho, pegar o polvilho, os ovos, o óleo, o sal, a manteiga, o caderninho de receitas, caindo aos pedaços, que nunca foi aberto, um recipiente pra misturar tudo, colocar a gordura pra esquentar e começar a magia.

Minha avó era daquelas senhorinhas baixinhas, magrinhas, do cabelo branco, com a cara fechada e silenciosa. Amável, amada, comprometida e competente. Exercia com naturalidade a arte de mimar os netos, mas quando o assunto girava em torno de fazer o biscoito que o afilhado mais gostava, não existia outra atividade que pudesse tirar o foco:
– Filhinho, vou fazer biscoito frito!
Isso mesmo, ela me chamava de filhinho. Eu adorava.

Geralmente, acontecia no fim da tarde. Junto do café fresquinho, passado na hora, bem doce, como a minha mãe faz até hoje. Eu esperava, ansiosamente, mordendo os dentes, aquele pó ganhar vida pra morrer na minha boca. Posso dizer que sempre achei isso tudo divino: pegar uma bacia, jogar o pó, quebrar os ovos, colocar o óleo, enfiar as mãos e transformar tudo em uma massa grudenta, borrachuda, feia que, logo, se tornaria num objeto de desejo que dominaria meus prazeres.

Depois dessa saga religiosa, já quando a gordura estava no ponto, eu só esperava o canto da massa estourando na frigideira. Também escutava minha avó dizer:
– Não chega perto do fogão, tá? O fogo tá quente, você pode se queimar.
Também sempre escutava algum caso do tipo:
– O filho da Terezinha, outro dia, bateu a mão numa panela cheia de óleo quente em cima do fogão e se queimou todo, foi até parar no hospital, tadinho.

Era doído receber esses casos e esses alertas, claro, mas também era doído, não poder ver aquela massa trançadinha e magrela, ganhar corpo dentro da panela. Não podia ver o meu desejo ganhar cor, sabor, textura e se tornar o biscoito frito da minha avó. O “barro” era posto no óleo quente e eu só escutava o som, que, quase como uma criação divina, fazia daquilo meu joguete preferido do fim de tarde.

Foto: acervo Territórios Gastronômicos

Eu nem esperava esfriar, não esperava os biscoitos serem empilhados sobre o papel de pão pardo na travessa. Também não esperava ela dizer que podia pegar. Eu só queria cometer aquele ato criminoso de roubar o primeiro biscoito antes de todo mundo. A língua e os dedos se queimavam. Às vezes, eu até suava com aquela preciosidade entre os dentes, no entanto, naquele exato momento, eu estava alheio ao contexto, retirado do mundo, em um território suspenso: eu só pensava em mim.

Voltei pra sala de casa, quando Tarsila anunciou que tinha deixado quebrar o liquidificador:
– Tudo bem, filha, a gente ajeita.

*Quando deixei Tarsila na casa da mãe já era noite. Sei que parece clichê olhar o céu e procurar estrelas, mas, nesse momento, eu não poderia fazer outra coisa, até porque, nesse caso – nem sei bem como posso chamar esse exercício –, a resposta dela me transportou até a infância, tempo em que, de verdade, meu desejo era de biscoito.

Rafael Duarte é colaborador do
Territórios Gastronômicos

Territórios Gastronômicos

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